quinta-feira, novembro 09, 2006

regina e a xícara de porcelana

Regina olha para a sua xícara e pensa que: 1) já não sabe se está bebendo chá de erva-doce ou se são apenas lágrimas amargas e 2) que é uma sorte que não gostar de leite, ficaria senão rendida ao sentimento de ridículo que a lembrança de certas expressões idiomáticas causa nessas situações. fazia agora algumas semanas que tudo havia acabado e ela ainda não era capaz de ouvir o silêncio à sua volta como algo pelo que havia aguardado por muitos anos. tinha se acostumado ao barulho, à gritaria fora de hora e aos nervos esticados nos momentos mais inconvenientes possíveis. não sabia o que era sentir paz; sentia culpa até por ter tomado a decisão correta: saíra de casa com a escova de dentes vermelha e uma calcinha de seda rosa, deixando para o marido esquizofrênico os 580 m2 de labirintos que mobiliaram juntos ao longo de sua intrincada história a dois.

estava agora sentada a uma mesa nua, sem toalha, de frente para uma parede nua, sem quadros ou cor expressiva. morava em uma quitinete; não porque não tivesse como ter melhor, mas porque o costume de ser tiranizada ainda estava enraizado em seus hábitos forçadamente inconscientes. olhava para o chá e pensava. pensava no nada que sentia por não ter mais a loucura do outro para esconder a sua própria. passara 12 anos diluindo pílulas no chá preto de seu cônjuge e agora tinha que, ela mesma, comprar os florais de Bach que tomaria, seguindo rigorosamente todas as indicações, na intenção de um dia tirar o peso do mundo de suas costas.
no momento em que decidira pegar apenas aqueles dois objetos aparentemente tão incoerentes para alguém que se prepara para a vida em um mundo novo, optara por uma vida pungente, simples e intensa. adquirira o costume, em apenas duas semanas, de se dar pequenos presentes e pensar que cada um deles era responsável por um pouco mais de verdade e conforto em sua vida. o minimalismo material estava ali para desnudar suas emoções e seus pensamentos, que por tantos anos haviam ficado escondidos debaixo da cama king-size, que pouco pela paixão havia feito. mais havia ajudado cada um dos dois a se sentir mais acolhido em sua solidão.

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